Parte do protestantismo brasileiro atual e das
iniciativas missionárias se deixou seduzir e sucumbiu ao tipo de mercado
religioso que coloca as pessoas no lugar para o qual Deus não as criou, como,
por exemplo, utilidade de engrenagem religiosa ou peça de cenário eclesiástico.
Isso me faz lembrar de curiosa pesquisa feita pela antropóloga polonesa Alicja
Iwanska com alguns fazendeiros ocidentais, cujos resultados são apresentados
parcialmente por William A. Smalley em seu artigo intitulado “The world is too
much with us”.*
Os achados da antropóloga me fazem perceber, de
imediato, que, por analogia e a exemplo das sociedades ocidentais, os sistemas
de valores, no Brasil de hoje, estão minados por uma forma desumana de ver a
vida, o que, de maneira muito sutil, minam também a Igreja e o seu jeito de
fazer missão.
Iwanska observou que os tais fazendeiros
ocidentais viam a vida como um universo de ângulos intrigantes, como algo
dividido em três categorias diferentes.
A primeira ela chamou de “paisagem”, que
incluía as montanhas distantes, as árvores, o cenário... Enfim, o meio
ambiente, desde que não tivesse sido manipulado. Os fazendeiros gostavam e
apreciavam a paisagem, mas de uma maneira desinteressada, sem muito conteúdo
emocional.
A segunda categoria ela chamou de “maquinário”.
Parte importantíssima para a vida, o maquinário era visto pelos fazendeiros
como algo tão essencial quanto qualquer aspecto ou elemento da existência.
Poliam e tinham muito cuidado com as máquinas, porque eram objetos de grande
interesse e preocupação, sem falar do grande senso de estima e do valor
financeiro.
Na cosmovisão dos fazendeiros, a importância de
cada máquina e seus acessórios e implementos estava relacionada à produtividade
da fazenda, por isso as máquinas representavam uma “classe” essencial do
universo. É curioso notar que, para eles, os bichos da fazenda: bois, vacas,
cavalos, éguas, mulas, galinhas, porcos, ovelhas, peixes e animais domésticos,
pertenciam à mesma classe do maquinário, porque também representavam um
“instrumento” importante da produtividade e, por conta disso, eram vistos e
cuidados da mesma forma que as máquinas.
“Pessoas” ou “gente”. Essa foi a denominação
que Iwanska deu à terceira categoria. Para os fazendeiros, as pessoas eram os
vizinhos, indivíduos que vinham para a fazenda para um copo de café, gente que
ajudava ou cooperava nos tempos de necessidade e emergência. Logo, pessoas eram
os seres humanos com quem eles cresciam, viviam e morriam. Eram aqueles com
quem possuíam e nutriam constante relacionamento social ou de negócio.
Assim, os seres humanos, considerados
“pessoas”, eram diferentes naquilo que eles próprios, os seres humanos, tinham
valor, pouco importando sua utilidade e produtividade.
Dessas constatações, contudo, a mais intrigante
e incômoda foi a descoberta de que, para os fazendeiros ocidentais, nem todos
os seres humanos eram pessoas ou gente. Os índios, por exemplo, pertenciam à
classe “paisagem”, porque faziam parte do cenário, do meio ambiente. Por conta
disso, os fazendeiros passavam pela reserva dos índios apenas para vê-los como
parte do todo no mosaico da natureza. Os negros e os mexicanos, por outro lado,
eram vistos como “maquinários”, já que o seu valor residia naquilo que produziam
para os patrões. A ajuda deles tinha quase o mesmo grau de importância e valor
que as vacas, as mulas, a bomba de óleo ou o arado.
Quando a produção dos negros e dos mexicanos
diminuía, por cansaço ou velhice, eram descartados, tal como se descarta um
carro velho, uma bota furada, um tubo de pasta de dente vazio, um chapéu
rasgado, um pneu gasto, um parafuso enferrujado ou um lampião que já não emite
a mesma luz de outrora.
Líderes, pastores ou missionários, bem como
igrejas locais, denominações ou agências missionárias, podem acabar
desenvolvendo essa mesma visão errônea, maligna e desumana, dando novas cores à
missão e tornando-a igualmente distorcida. Podem se tornar “fazendas” onde o
que vale mesmo não são as pessoas em sua totalidade e integralidade, mas a sua
produtividade, os dividendos contábeis que trazem, a força do trabalho que
realizam, o poder de mídia que representam.
Quando isso acontece, sutilmente se redesenham
percepções sobre que base de fato a vida e a missão da igreja estão firmadas. A
teologia prática e a práxis de missão passam a andar na contramão da natureza
da Igreja. As percepções de nós mesmos como ministros do evangelho ou
missionários também acabam ganhando cores desumanas.
Nas igrejas e nas agências missionárias, bem
como nos “campos brancos” da missão, há seres humanos com um forte clamor: “A
gente é gente, gente”.
Devemos ouvir esse grito!
AUTOR: Luís Wesley de Souza
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