sexta-feira, 24 de junho de 2016

"A GENTE É GENTE, GENTE!"





Parte do protestantismo brasileiro atual e das iniciativas missionárias se deixou seduzir e sucumbiu ao tipo de mercado religioso que coloca as pessoas no lugar para o qual Deus não as criou, como, por exemplo, utilidade de engrenagem religiosa ou peça de cenário eclesiástico. Isso me faz lembrar de curiosa pesquisa feita pela antropóloga polonesa Alicja Iwanska com alguns fazendeiros ocidentais, cujos resultados são apresentados parcialmente por William A. Smalley em seu artigo intitulado “The world is too much with us”.*

Os achados da antropóloga me fazem perceber, de imediato, que, por analogia e a exemplo das sociedades ocidentais, os sistemas de valores, no Brasil de hoje, estão minados por uma forma desumana de ver a vida, o que, de maneira muito sutil, minam também a Igreja e o seu jeito de fazer missão.

Iwanska observou que os tais fazendeiros ocidentais viam a vida como um universo de ângulos intrigantes, como algo dividido em três categorias diferentes.

A primeira ela chamou de “paisagem”, que incluía as montanhas distantes, as árvores, o cenário... Enfim, o meio ambiente, desde que não tivesse sido manipulado. Os fazendeiros gostavam e apreciavam a paisagem, mas de uma maneira desinteressada, sem muito conteúdo emocional.

A segunda categoria ela chamou de “maquinário”. Parte importantíssima para a vida, o maquinário era visto pelos fazendeiros como algo tão essencial quanto qualquer aspecto ou elemento da existência. Poliam e tinham muito cuidado com as máquinas, porque eram objetos de grande interesse e preocupação, sem falar do grande senso de estima e do valor financeiro.

Na cosmovisão dos fazendeiros, a importância de cada máquina e seus acessórios e implementos estava relacionada à produtividade da fazenda, por isso as máquinas representavam uma “classe” essencial do universo. É curioso notar que, para eles, os bichos da fazenda: bois, vacas, cavalos, éguas, mulas, galinhas, porcos, ovelhas, peixes e animais domésticos, pertenciam à mesma classe do maquinário, porque também representavam um “instrumento” importante da produtividade e, por conta disso, eram vistos e cuidados da mesma forma que as máquinas.

“Pessoas” ou “gente”. Essa foi a denominação que Iwanska deu à terceira categoria. Para os fazendeiros, as pessoas eram os vizinhos, indivíduos que vinham para a fazenda para um copo de café, gente que ajudava ou cooperava nos tempos de necessidade e emergência. Logo, pessoas eram os seres humanos com quem eles cresciam, viviam e morriam. Eram aqueles com quem possuíam e nutriam constante relacionamento social ou de negócio.

Assim, os seres humanos, considerados “pessoas”, eram diferentes naquilo que eles próprios, os seres humanos, tinham valor, pouco importando sua utilidade e produtividade.

Dessas constatações, contudo, a mais intrigante e incômoda foi a descoberta de que, para os fazendeiros ocidentais, nem todos os seres humanos eram pessoas ou gente. Os índios, por exemplo, pertenciam à classe “paisagem”, porque faziam parte do cenário, do meio ambiente. Por conta disso, os fazendeiros passavam pela reserva dos índios apenas para vê-los como parte do todo no mosaico da natureza. Os negros e os mexicanos, por outro lado, eram vistos como “maquinários”, já que o seu valor residia naquilo que produziam para os patrões. A ajuda deles tinha quase o mesmo grau de importância e valor que as vacas, as mulas, a bomba de óleo ou o arado.

Quando a produção dos negros e dos mexicanos diminuía, por cansaço ou velhice, eram descartados, tal como se descarta um carro velho, uma bota furada, um tubo de pasta de dente vazio, um chapéu rasgado, um pneu gasto, um parafuso enferrujado ou um lampião que já não emite a mesma luz de outrora.

Líderes, pastores ou missionários, bem como igrejas locais, denominações ou agências missionárias, podem acabar desenvolvendo essa mesma visão errônea, maligna e desumana, dando novas cores à missão e tornando-a igualmente distorcida. Podem se tornar “fazendas” onde o que vale mesmo não são as pessoas em sua totalidade e integralidade, mas a sua produtividade, os dividendos contábeis que trazem, a força do trabalho que realizam, o poder de mídia que representam.

Quando isso acontece, sutilmente se redesenham percepções sobre que base de fato a vida e a missão da igreja estão firmadas. A teologia prática e a práxis de missão passam a andar na contramão da natureza da Igreja. As percepções de nós mesmos como ministros do evangelho ou missionários também acabam ganhando cores desumanas.

Nas igrejas e nas agências missionárias, bem como nos “campos brancos” da missão, há seres humanos com um forte clamor: “A gente é gente, gente”.


Devemos ouvir esse grito!

AUTOR: Luís Wesley de Souza

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